A Casa Somos Nós

Voltei. Como uma espécie de invocação de mim mesma. Sinto-me ainda a navegar num detox de ódios meus, mas caminhos outrora amados, inscritos num interior fragmentado, cansado, com um constante vício de mudança, como se de escravatura se tratasse. Escrevo a soluçar não sei se de uma estranha saudade da vida urbana ou de uma estranha gratidão pela solidão. Não sei se sou só aquele vulto que julga perseguir algo maior ou se apenas persigo um vento inquieto, com a mesma indecisão do sol em dias de arco íris. Ou serei esse vulto moribundo, cujo retrato é um corpo esfumado no fundo de uma estrada sem nome, numa noite anónima de inverno, com uma silhueta que não parece desaparecer no retrovisor. Talvez fosse especial. Talvez dali se pudessem erguer grandes feitos, pronunciar grandes palavras na sobriedade de um coração grande, na nitidez de uma mente sã. Talvez eu não fosse um qualquer, mas o único naquela estrada. Caminhos pálidos e sofridos que muitos não ousam pisar. O confronto com as emoções, com as cruzes que pesam, com o abraço que falta e não volta. Era necessário voltar porque grande parte de mim é o que está aqui e tenta falar. Há dias que fala de mansinho, outros que grita como multidões enfurecidas. Lá ao longe, aquele mundo de alpinistas sociais, aqueles que vivem em buracos estagnados e se saciam de rotinas circulares, talvez nunca se apercebam do afastamento de si mesmos. De rostos mastigados, olhares indiferentes e crenças viradas do avesso. Sinto que uma parte da fénix renasceu na frescura desta floresta. Jamais seria nos olhos tristes dos decadentes que procuram o décimo transporte do dia. Acho sim que algo eu venci. Foi uma espécie de apagão para voltar a aprender a dançar. Foi o tocar nas raízes das árvores e entender a forma como elas cresceram. Foi como vir ao passado para encontrar a chave do futuro. Voltarei a rodopiar na direção do sol, talvez noutros campos mais desconhecidos e planos mas eu mais conhecida de mim. A liberdade escreve-se em linhas anónimas e, por isso, percebi que apenas faltou isso, o singelo anonimato. A beleza de se viver livre reside em olhares virgens, telhados nunca vistos, asas prematuras que nunca esconderam manuscritos. Faltava Mozart. Faltavam as feridas do passado para isto ser aconchego. Como se esta bolha só fizesse sentido com o eu da infância. Hoje as dores são diferentes. Estes campos são o refúgio do meu passado e, hoje, da minha estranha felicidade. Serão eles ainda meus? As montanhas reconhecer-me-ão? Será este nevoeiro o eco de dores antigas? Haverá a mesma rocha onde me sentar? Há betão. Há só a sociedade que tanto quer fazer o que ainda não foi feito, mas forrada de velhos problemas. Eu voltei diferente e a pedra onde me sentava também já não existe. Esta foi uma passagem de eterna confusão e estranheza, o ver-me fora de mim, mas o sentir-me tão dentro de mim. Ficará aqui também este eu feliz plantado nas flores que deixei no jardim. Não irei de mão cheia, mas de mão inteira, porque a casa somos nós. 

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Zaask

Escritora e Fotógrafa