Vamos Normalizar

Vamos normalizar o trabalho fora da área, a mudança de área várias vezes na vida e normalizemos também a idade com que o fazemos e os motivos. 

Há claramente uma ligeira emancipação dos jovens em procurar declaradamente os seus direitos, em vez de dizerem que sim a tudo porque não querem viver com o fardo da ingratidão, o medo dos olhares dos vizinhos ou porque têm zero auto estima e acham que não valem um salário inteiro. 
Há também maior lucidez em assumir a toxicidade nos trabalhos, porque antigamente isso era normal e levava um troféu para casa quem levasse mais porrada porque era a filosofia de se "saber viver". 
A verdade é que os reais ingratos são os que contratam em massa de olhos fechados, analisando currículos por inteligência artificial, ou que abrem vagas fantasma para alguém que já vestiu a farda, enquanto alguns ainda tentam a sua "sorte" na sala de entrevistas. A maior ingratidão existe nos chefes que te fazem acreditar que tu é que és o ingrato. E é por essa linha que começa a toxicidade. Quanto aos vizinhos, eu só lhes daria a importância de interferir nas minhas escolhas se eles fizessem questão de me pagar a renda e a gasolina, caso contrário têm uma voz nula, até porque normalmente são os "não formados" que tendem a criticar. 

Quanto à falta de auto estima, peço um ligeiro rasgo de coragem aos jovens que ainda não acreditam que conseguem fazer mais do que uma única coisa na vida. E peço sobretudo mente aberta aos que olham de lado. Deixem de nos tornar coitadinhos quando se calhar ganhamos mais que vocês a trabalhar menos horas. Deixem de nos colocar a obrigação de, à volta da mesa de café, termos de justificar o porquê de não trabalhar na área, como se nos faltasse uma perna. Deixem a história do "caso perdido" e da "desistência". Nós não desistimos, nós simplesmente traçámos novos rumos e percebemos que há tantos caminhos interessantes para se explorar. Deixem-se desses pensamentos retrógrados acerca do part time porque isso não só não é uma doença como muitas vezes é sinónimo de ir viajar mais vezes do que o comum mortal que veste um colete de forças para trabalhar. Porquê que nós, jovens, nos havemos de contentar com migalhas que só enchem bocas pequenas, quando temos ao lado uma padaria com o pão inteiro? 

O nosso tempo é precioso. Part time não é um estilo de vida que escolhemos, é uma alternativa que a sociedade oferece e o que nos define não são as horas trabalhadas, mas como gerimos a vida em torno disso. Valemos pelo que somos e não pelo que fazemos, mas pelo nível de vida que construímos com aquilo que o trabalho nos dá. 

Hoje em dia o trabalho é mais sobre o que ele te permite ser e não o que ele te obriga a ser. 
Cada vez mais o trabalho tem, por direito nosso, de nos colocar num patamar de estabilidade, mais do que só a sobrevivência. A escravatura, as horas não pagas, o contar trocos ou a máscara que temos que colocar não têm preço face aos estragos emocionais que provocam. Não há salário ou estatuto que possa caber na nossa dignidade, mas sim na nossa fragilidade. A dignidade somos nós, é o nosso tempo, o nosso lugar no mundo, a nossa descendência, é algo imortal. O salário e estatuto são meras retribuições materiais, efémeras, meros slogans que visam conquistar fracos. 

Todos começamos por tentar os caminhos óbvios, o trabalho conceituado ou o estágio promissor na área, mas o mercado português mostra-nos que o clima tóxico, os contratos temporários, salários precários e a ausência de progressão, são tudo ingredientes mais do que evidentes para traçar atalhos. 

Por isso desçam do salto alto. Encarem os factos e não os preconceitos. Sejam alma em vez de serem o ego dos outros. Porquê que insistimos em só pesar as capacidades intelectuais? E onde fica a resiliência, a criatividade, a capacidade de adaptação? Onde fica a comunicação verbal, a polivalência e os talentos artísticos? Não invejo um milímetro da vaidade inflamada dos currículos, invejaria apenas uma noite sem insónias. Porquê que insistimos na estatística do auge dos ataques cardíacos serem ao domingo à noite e segunda de madrugada? Estarão assim tão felizes os submissos que estão em ótimas empresas?

Dignidade é pagarmos as nossas contas, é não viver com medo, é assumir que temos vários talentos, mas principalmente é sentir que da mesma forma que somos um elemento que acrescenta, também a nossa empresa se torna num fator chave para atingir a nossa felicidade. 

Dignidade não é saber construir o barco, é trabalhar na coragem para vencer o oceano.

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Zaask

Escritora e Fotógrafa