Porto
(meu contributo para a Chiado Books para a coletânea "Porto, Uma Cidade com Alma")
Jamais me esquecerei. Era Natal de 2019 e o Porto teimava em ser fôlego na minha cabeceira. Vinha o carro cheio, de roupa e medo. Ansiava a aventura do mundo profissional, ansiava o terreno do mundo dos adultos. E foi de lágrima escondida que se fez ouvir na rádio a música “vem ter comigo aos Aliados”. Desabei de telepatia, magia e tanta coisa estranha e boa dentro de mim. Por mais complexo que fosse descodificar aquela despedida dos meus pais, eu sabia e sentia que algo ali iria ser meu, algo me esperava. Mal imaginava que esses mesmos Aliados de que a música falava iriam ser o ponto de tantos encontros, de cantigas na viola pela noite dentro ou a solidão em que tanto escrevi a olhar para a noite da cidade. Um morro de poesia, uma ponte de promessas de amor. Fez-se história e o mundo real foi desvendado. Fui intensa, fui toda eu, conheci todas as ruas, fui ave migratória em busca de alimento. E tanto que o Porto conseguiu ser para mim. Foram bolhas de pessoas, brindes dados à pressa, baladas de desabafos, o eco das festas e dos conselhos, a rotina, o passageiro, o comboio a arrancar, o relógio da estação como centro, os turistas famintos, os azulejos antigos, a última freira de São Bento, os caminhos subterrâneos das lendas, as velhotas a discutir o funeral ou a saia da vizinha, o rosto triste do metro, a alma cansada de quem espera, o eco das vozes na Sé, a raiva de quem perdeu o transporte, o pôr do sol no Palácio, o rasgo de luz das Fontaínhas, os risos altos das Virtudes, o catálogo das francesinhas, o fumegar das castanhas no outono, os barcos a atracar, o farol de Leça a reluzir, as gaivotas a roubar-nos o lanche, a arte das ruas, a vaidade, o fanatismo futebolístico e o São João com os martelos da vida e um céu quente de sonhos. Foi todo um mundo alternativo onde explorei outras formas de pensar, outros argumentos, outro posicionamento, outra vontade de arriscar. Nacionalidades e corpos flutuantes que nos traziam a verdade da vida, a ampla verdade das coisas e a diferença dentro daquilo que somos. Depois o vírus que assolou a cidade. Estremeci porque perdi a bateria social mas algo em mim gritava por aquela calma ainda pouco reconhecida como necessidade. As ruas limpas, o silêncio, a vontade de caminhar sem ser-se visto. Existia um lado em mim ávido por uma âncora sossegada. As horas no trânsito evidenciaram isso, a falta de segurança, tal como os rostos expostos de dor em hora de ponta, a tortura de nada depender de nós, mas da conjetura de um mundo não pedido por mim, levado ao limite, a rebentar de recursos, que fez da sua falta de urgência a maior delas todas. Aos poucos começava a querer ser dona do meu tempo, sem que as horas afixadas ou placas de regras impusessem uma forma de caminhar. A mesma cidade que me ensinou a ser livre e um pouco fora do paradigma, foi a mesma que mais tarde me retirou o oxigénio. Sonhar até um certo ponto, viver só até não tropeçar. Senti-me claustrofóbica naquele vandalismo, naquela cobrança dentro de tudo o que fazia. Já tudo me parecia um flash repetido. Eu era só mais um robot. No início fiquei assoberbada com tanto, que achei que esse tanto era onde eu tinha que chegar, que tendi a romantizar o ritmo alucinante das coisas e passei a normalizar a digestão fácil e rápida das emoções, tornando-me mais fria, mas a minha natureza nunca foi essa, foi a de olhar lentamente, a de sentir e saborear, e a metrópole tirou-me esse compasso de espera. Só quando tudo já estava visto e sentido é que o meu interior voltou a ansiar pelo tempo. Mas tudo continuava a acontecer à pressa, cada vez mais perto da morte, em carruagens encapsuladas, onde a minha nova liberdade auto-confiante já não teria espaço. Entendi que sou diferente do sistema e das marés das maiorias e foi o Porto que me ensinou isso. Obrigado. Foi disso que se tratou, uma jornada de auto conhecimento e isso só é possível quando chocamos de frente com a vida. Foi preciso sofrer nesta cidade para ela ficar com pedacinhos de mim. Sem emoções vividas eu teria sido inerte a tudo isto e nem a cidade me reconheceria. Mas eu sinto que o Porto sabe quem sou e que estará sempre lá um lugar emocional meu, um lugar imaginário cativo com partes de mim. No fim desta trajetória foi também o Porto que me deu um amor verdadeiro na altura mais imprescindível e caótica. Passaram-se anos e hoje entendo o porquê de tudo ter acontecido desta forma. Sigo a vida de mãos dadas com quem me abraçou de verdade. Hoje a nossa vida é fora do Porto mas ele será sempre casa de memórias. Percebi que eu só esperava por um propósito lapidado por uma grande história. O Porto foi essa grande história inesquecível.
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